outro homem sem qualidades

conversa pública

em aberto

 

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     É comum eu me lembrar de fatos ou situações quando estou fazendo algo sem nada de especial como, por exemplo, coar café ou tratar do canarinho Milton Sentimento e da periquita Ana a Vadia; nada incomum como levar um tropeção ou soltar um palavrão ao reclamar de outra fila, e foi assim que me lembrei do livro O Homem Sem Qualidades, do austríaco Robert Musil, um livro que ficou inacabado, pela morte do autor, cuja primeira parte foi publicada em 1930, e a segunda em 1937, marcando presença na Europa. É um livro de perguntas, questões filosóficas, de cordas sem pontas, de lápis sem razão de ser, de papel passado à inquietação, fala das muitas forças de opressão, do consciente e do inconsciente (sem ser uma obra psicanalítica), uma obra que nos leva a pensar em como é que tanta gente é levada ou permanece por toda a vida sem dar a cara – é assim que ainda o vejo: ético, sem saída, areal movediço, vários túneis ferroviários cruzando-se sem sinalização nenhuma, réplica e tréplica no esquecimento, alguém que ganhou na loteria, mas perdeu o bilhete.

     Por acaso, encontrei no blog Livros que eu li uma apreciação daquilo que Robert Musil apresentou numa conferência em Viena, em 1937, de nome Da Estupidez // Über die Dummheit. O autor do blog, Aguinaldo Medici Severino, escreveu que “ele começa a palestra provocativo, afirmando que a estupidez se assemelha tanto com o progresso, com o talento e com o aperfeiçoamento das coisas, que quase todos aprendemos que a atitude mais inteligente que podemos adotar neste mundo é a de nos fazermos notar o menos possível, a de passarmos por estúpidos.

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      Fiz essa foto durante uma corrida no bairro São Bento, BH, onde duas cadeiras, vazias como um diálogo moderno, como que anunciavam mais um dia de vácuo, ou quase. Não conseguindo ver nenhum dos vigias (note o detalhe do cabide), pensei ter ouvido vozes, e me inquietei ainda mais, já esquecido da corrida, pensei que eles podiam ser invisíveis, ou seja, para além das minhas possibilidades. Ser invisível acarreta inúmeras vantagens, e eu nem quero pensar que este dia para mim chegará.

 

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Foto e texto: Darlan M Cunha