as cidades, 4

construção

Há cidades que vivem no ar, iludem de forma cabal; outras há que imitam um jogo de sombras, ou seja, elas também, assim como as outras, imitam a si mesmas, e há cidades dentro da cidade, de tal forma que fazem um mosaico, e os moradores só conhecem aquela parte na qual transitam todos os dias, assobiando e chupando cana, ou coisa que o valha. Cidades com mil tons, mil brilhos, rios de suor, o cansaço e o medo à venda em cada esquina, mas sempre há festa em algum lugar, uma catarse é necessária para que se consiga ir em frente. As cidades estão sempre em construção, mesmo quando demolidas, para que uma nova cirurgia plástica entre em cena. “E se acabou no chão feito um pacote flácido.“*

Darlan M Cunha

Textos curvos: ilhas, iscas & uivos – 8 (final)

CORDAS EM PARALELO: SIMBOLISMO
***

Apressar o passo das colheitas, da marreta, do ato, aligeirar a preguiça, o manco e o cego, o surdo e o mudo, a afronta salarial, verticalizar todos os inapetentes e desassombrar as frígidas, fazendo o Bem sem olhar a quem, ou o Mal. Isso depende de muitos fatores. Desliza por baixo das anáguas do mar, nas espumas bem cláridas da Ilha do Nada.

DARLAN M CUNHA (MG, Brasil)

***

Morre lentamente quem não viaja, quem não lê, quem não ouve música, quem destrói o seu amor-próprio, quem não se deixa ajudar. Morre lentamente quem se transforma em escravo do hábito, repetindo todos os dias o mesmo trajeto, quem não muda as marcas no supermercado, não arrisca vestir uma cor nova, não conversa com quem não conhece. […] Talvez não tenha vivido em mim mesmo, talvez tenha vivido a vida dos outros.”

PABLO NERUDA (Chile. Nobel de Literatura 1971. CONFESSO QUE VIVI).

***

Ninguém se atreveu a intervir. Uriarte perdera terreno, Duncan então carregou. Os corpos já quase se tocavam. O aço de Uriarte buscava a cara de Duncan. Subitamente, nos parecera mais curto, porque penetrara no peito. Duncan ficou estendido na grama. Foi então que disse com voz muito baixa: – Que esquisito. Tudo isso é como um sonho. Não fechou os olhos, não se moveu, e já tinha visto homem morto. Maneco Uriarte inclinou-se sobre o morto e pediu-lhe que o perdoasse. Soluçava mesmo. O que acabara de cometer o dilacerava. Agora sei que se arrependia menos de um crime que da execução de um ato insensato.

PABLO NERUDA (Chile, Nobel de Literatura 1999. HISTÓRIA UNIVERSAL DA INFÂMIA & OUTRAS HISTÓRIAS).

***

A esposa, sob a fantasia contínua, não só chegou temerariamente a essa conclusão, como esta transformou sua vida em mais alargada e perplexa, em mais rica, e até supersticiosa. Cada coisa parecia o sinal de outra coisa, tudo era simbólico, e mesmo um pouco espírita dentro do que o catolicismo permitiria. Não só ela passou temerariamente a isso como – provocada exclusivamente pelo fato de ser mulher – passou a pensar que um outro homem a salvaria. O que não chegava a ser um absurdo. Ela sabia que não era. Ter meia razão a confundia, mergulhava-a em meditação.  //  O marido, influenciado pelo ambiente de masculinidade aflita em que vivia, e pela sua própria, que era tímida mas efetiva, começou a pensar que muitas aventuras amorosas seriam a vida.  //  Sonhadores, eles passaram a sofrer sonhadores, era heroico suportar. Calados quanto ao entrevisto por cada um, discordando quanto à hora mais conveniente de jantar, um servindo de sacrifício para o outro, amor é sacrifício.

CLARICE LISPECTOR (Ucrânia / Brasil). A LEGIÃO ESTRANGEIRA, cap. Os Obedientes.)

***

Foto: Darlan M Cunha. (Fim da série).

A ESTRADA & O VIOLEIRO, autor SIDNEY MILLER (RJ, Brasil – 1945 / 1980). Cantam: MPB-4 e QUARTETO EM CY: https://www.youtube.com/watch?v=rMzhevB_y-U

selfie diferente

Ambiente
***

CASA – 3

A casa é música, ora em ré bemol menor, ora em sol sustenido maior, ora em lá maior, a casa é instrumento musical, a partitura dentro da qual a vida nos dá o que pensar e fazer, lega-nos um labirinto cheio de antíteses: claro e escuro, frio e quente, bom e ruim, duro e mole, longe e perto, alto e baixo. Uma cortina tem e vê dois mundos: o interior e o exterior. Lembra.

Quando a casa está em ponto morto, é evidente que já não há nada a fazer. Quando a casa está na nota ré, as coisas vão de mal a pior, mas pode ser que alguém canalize raios de sol, nervuras, cada teor psicológico se reaviva, os canteiros sejam afofados com mais oxigênio, e devido a isso o ambiente se regenera, a exemplo dos lagartos que, quando perdem parte do rabo, este se regenera, pelo que lugar de derrotas essa casa deixe de ser.

A casa é a pequena sociedade, pilar da aldeia, base da pirâmide – tijolo por tijolo num desenho lógico.*

***

Foto e texto: Darlan M Cunha

Amor de índio. BETO GUEDES e DJAVAN : https://www.youtube.com/watch?v=Fe_nLBD9Hh4

abstrato

PhotoFunia-1522948429

***

     Viver escondido em abstrações, os punhos e os pés envoltos em veludo, seda ou algodão, porque todo cuidado é pouco nesses tempos de privacidade nula, portanto, melhor agir de leve, levando nossos cristais entre algodão, que a louça é frágil, que o andaime pode cair (e se acabou no chão feito um pacote bêbado).*

 

Duas fotos interiores, texto e arte: Darlan M Cunha

Base para as fotos: PhotoFunia

Guerreiros C

Pedro, no quarto maior

Pedro, pedreiro (sem esperar o trem), e o Pêndulo de Foucault

 

     Poeira, vestígios de sua presença, de sua irritante persistência, mas são os ossos do ofício que um pedreiro assume todo dia, mas ele não deixa de sonhar com uma banheira, embora nada o toque mais do que estar na escada ou espremido entre um vão e o perigo, o pincel, a broxa e o prumo não podem tremer, e no chuveiro é preciso ter atenção, o choque não brinca, e assim o sábio desliga a chave geral, por bem ou por mal, voltar para casa é o ideal de Pedro

     pedreiro, mas pode me chamar como quiser, nunca de Nada À Esquerda, tenho brios, caráter retilíneo, Pedro, nada tenho de João Teimoso, aquele boneco indo pra lá e pra cá, como o pêndulo de um relógio ou, por exemplo, o pêndulo do cientista Foucault.

     Meu amanhã é sempre feito de ligas, batidas (poeira sutil) e medidas, mas a obra toma corpo, e alguns passantes param diante da obra que se abre em leque para a rua, sim, em breve eles e elas terão vizinhança nova.

 

Foto e texto: Darlan M Cunha