permanente

UNIDOS… MAS… SEPARADOS // SEPARADOS… MAS… JUNTOS

***

Sempre tive a verdadeira amizade no mais alto conceito, mais alto ainda do que o obrigatório exercício de se viver juntos, o que, muitas vezes, dá em choro, neblina, fumaça, duas esquinas vazias, duas estradas com poeira recém levantada e cheia de rancores, etc.

Eu não quero amigas ou amigos somente para bebermos cerveja, não, quero amizades para os momentos duros, solitários, sendo aquela pessoa que numa doença é uma das primeiras a ir ao hospital, à casa ou ao velório, logo que recebe a notícia. E se escrevo isto aqui, é porque eu e outros e outras pessoas ajudamos a quem merecia e continua merecendo o respeito de todos por aqui, e para além desta aldeia grande.

Sempre tive a verdadeira amizade – sua profundidade, seu desprendimento e suas risadas da cor do sol – num conceito muito alto.

***

I have always held true friendship in the highest regard, even higher than the obligatory exercise of living together, which often leads to weeping, fog, smoke, two empty corners, two roads with newly raised dust and full of grudges, etc.

I don’t want friends just for drinking beer, no, I want friendships for the hard, lonely moments, being that person who in an illness is one of the first to go to the hospital, to the house or to the wake, as soon as they receive the news. And if I write this here, it is because I and others and others have helped those who deserved and continue to deserve the respect of everyone around here, and beyond this big village.

I have always held true friendship – its depth, its detachment, and its sun-colored laughter – in a very high concept.

***

Darlan M Cunha: foto e texto

nublado

Raposos – MG

***

Salmo do Espanto / Psalm of Astonhishment

Não se tenha dedos só pra sonhar, Senhor sem Anéis, não te escondas nas promessas que há na raiz da fala onde se cavam túneis sem fim

não te atenhas só a um vício, não, faz deles uma casa ampla forrada com o veludo carmim do medo, ó Bom Pastor de Óbitos Diários nas Aldeias

Senhor, fazei também de mim um instrumento do vosso samba-jazz: pistom tocando muralhas em ré sustenido maior, ou baquetas fornicando com a argamassa do medo

Ó Pastor das cabritas e das ovelhas, tenras criaturas em sua sina de servir, eis aqui e ali a cerviz curvada dos pequenos pastores brilhando sob o cutelo do sol

temos em nós, peregrinos e peregrinas, momentos de dúvida e desespero, como este que agora nos assola – mundo lindo, mundo findo, sem que nenhuma luz se veja – nem a Tua.

Profeta Landar 69 : 21

***

Don’t have fingers only to dream, Lord without Rings, don’t hide yourself in the promises at the root of speech where endless tunnels are dug

do not cling to one vice alone, no, make of them a wide house lined with the crimson velvet of fear, O Good Shepherd of daily deaths in the villages

Lord, make me also an instrument of your jazz: piston playing walls in D major, or drumsticks fornicating with the mortar of fear

O Shepherd of the goats and the sheep, tender creatures in their fate to serve, behold here and there the bent neck of the little shepherds shining under the cleaver of the sun

we have in us, pilgrims, moments of doubt and despair, like this one that now besets us – a beautiful world, a world at an end, with no light to be seen – not even Yours.

Prophet Landar 69 : 21

Darlan M Cunha

tentáculos

“Que tragédia é essa que cai sobre todos nós ?” (MILTON – Estrada do Sol)

***

Os opostos vivem em todos os lugares. Sempre foi assim: uns precisam dos outros. Elementar. Olha, de se ser um girassol do espanto, ou de se ser uma árvore, não se canse quem tentar, pois através de suas sementes, do pólen, as árvores caminham há muito mais tempo do que os humanos. Quanto ao meu vizinho à esquerda, outro da mais pura lavoura arcaica ele é junto aos outros, como poucos. Estamos na Era Nano, vírus é nano, embora nem todos. Em tempo, eu ouço que é preciso que cada qual encontre e dialogue com o seu próprio oposto, aquele que está por aí, a um palmo de distância de cada pessoa, com o seu jeito soez ou não, relapso ou não, cruel ou não, um jeito mimético ou aberto como se fosse um leque, uma varanda, um sorriso matinal. Ontem eu saí de casa, vim com a mala cheia de exclusão, o mundo é enganosamente grande, tudo é diferente, mas tudo sempre nos lembra algo similar, alguma coisa quase da mesma cor e quase com as mesmas formas, embora quase nunca se lhes saiba as intenções. E é justamente nisso – na Incógnita – que resiste / existe a beleza. Estou de bruços, nada me dói, tudo me dilacera, vivo como quem irá à feira daqui a pouco, mas tenho medo do que é invisível, é preciso cautela contra isso. Estamos todos de um jeito diferente, uma febre diferente nos tornou ariscos e amargos, trêmulos e sonsos, enfim, estamos assim feito espantalhos sem serventia numa grande lavoura ressecada, Mas há tempo, parece, de se pisar neste terrível rastilho, neste algoz, neste ladrão da alegria, nesta inenarrável algazarra da morte. Quando um muro separa, uma ponte une, diz a canção.

***

Opposites live everywhere. It has always been this way: one needs the other. Elementary. Look, of being a sunflower of wonder, or of being a tree, don’t get tired who tries, because through their seeds, through pollen, trees have been walking much longer than humans. As for my neighbor to the left, another of the purest archaic farming he is along with the others, like few others. We are in the Nano Age, viruses are nano, though not all. In time, I hear that it is necessary for everyone to find and dialogue with their own opposite, the one that is out there, an inch away from each person, with its own way or not, relapse or not, cruel or not, a mimetic or open way as if it were a fan, a balcony, a morning smile. Yesterday I left home, I came with a suitcase full of exclusion, the world is deceptively big, everything is different, but everything always reminds us of something similar, something almost the same color and almost the same shapes, although we almost never know their intentions. And it is precisely in this – in the Unknowns – that beauty resists / exists. I am on my stomach, nothing hurts, everything tears me apart, I live like someone who will go to the fair in a while, but I am afraid of what is invisible, one has to be careful against that. But there is time, it seems, to step on this terrible fuse, this tormentor, this thief of joy, this unspeakable racket of death. When a wall separates, a bridge unites, says the song.

Darlan M Cunha

FAMÍLIA ASSAD e KEITA OGAWA cantam e tocam Milagre dos Peixes, de MILTON NASCIMENTO: https://www.youtube.com/watch?v=ppVU_zC6Qnk

numeral

solidão a dois // loneliness in two

***

Uma vez que outro rio seca, que as cadeiras vergam ao peso das ausências, que ninguém tem certeza de mais nada, o que fazer, onde procurar a sombra da Razão, a sementeira de novas buscas ? Embora todos tivessem sido avisados, a erva daninha espalhou-se pelo asfalto, feito rastilho de pólvora, mas apesar de tudo isso – sem essa de “falar é fácil” -, apertados os cintos, vamos ao café, ao bar, depois, cada qual com sua vassoura e espanador anti sombra. As cadeiras voltarão a estar cheias.

***

Once another river dries up, once the chairs bow to the weight of the absences, once no one is sure of anything anymore, what to do, where to look for the shadow of Reason, the seedbed of new searches? Although everyone had been warned, the weed spread across the asphalt like a gunpowder fuse, but in spite of all this – not that “talking is easy” – once we tighten our belts, we go to the café, to the bar, then, each one with his or her broom and anti-shadow duster. The chairs will be full again.

DeepL.com

Darlan M Cunha

Walter Franco (1945-2019). Nasça. https://www.youtube.com/watch?v=YS7I32k9nBk

optar

Paredão ou Luz (Cachoeira da SAMSA. Rio Acima. MG, Brasil)

***

Darlanianas

no Dia Mundial das Livrarias

@1.

O rubor chegou e ficou de pé, imprensado contra a parede e contra si mesmo, teve que ouvir frase lapidar, depois dela ouviu prédicas, ladainhas, sermões hiper admoestadores e, por fim, ouvir uma caudal de nome discurso, porque o rubor é indefeso diante de certos fatos. Sua reação é involuntária, sobe e esquenta as faces, às vezes, ele até chora e solta pontapés e palavrões para todos os lados, coerente e incoerente consigo mesmo, pelo que fez e não fez – está vivo, suando frio, mastigando erros e acertos, projetos inconclusos, rios de dúvidas e tristeza, querendo bem longe de si certo tipo de mundo.

@2.

Hoje é dia de temor na aldeia a qual nas sextas-feiras – dia treze ou não – é vigiada com mais minúcias ainda, talvez nada aconteça, como de outras vezes, mas já no início da madrugada soou o alarme, pois uma criança, ou algo parecido, foi vista na ala norte, e logo, horrorizado, o povo notou-a sem rosto, locomovendo-se como se o tivesse, a aldeia se fez de joelhos, seu antigo costume de dar-se de joelhos – menos eu e outros, resolvidos a não darmos fim a tal expiação e bulício, porque talvez o melhor seja rever como é que o povo paga pelo que faz a si mesmo a cada giro da ampulheta.

@3.

Continuando sua explanação, seu delírio momentâneo, ela disse que “homem de roupão é o máximo, vi na tevê” – disse, e eu fiquei na minha, calado que nem um bode ressabiado, tarado com vontade doida de esganar homem roupão cipreste barco arco reflexo e arco e flecha também esganar gato cachorro bolsa de valores incendiar presídios igrejas fóruns quartéis & mil réis, dar sumiço nos pobres parasitas vadias matar todas as baratas a chineladas pulgas e piolhos, enfim, eu fiquei alucinado com aquela ingênua confissão, e foi então que me percebi muito doente, sim, um pré paciente já nos últimos gorgolejos da Razão, tragada por um egoísmo só visto no seio das piores causas, no meio de ruas mais abandonadas e confusas do que certas mentes, eu me notei sem prumo, perdido no meio da aldeia quanto nas veias da casa.

@4.

Temeroso, ao extremo de suar em bicas, levado a custo por gente amiga ao cadafalso – foi assim que ele se referiu ao consultório do urologista, fazendo pilhéria para ver se se relaxava um pouco, pois era preciso, e alguém disse o de sempre: Ó, vai ser bem rápido e indolor – no que aquele paciente com hora marcada não acreditou. Mas foram, sentaram-se dentro do silêncio branco, até que seu nome foi citado, pareceu muito distante, e foi para o exame, de onde voltou radiante, porque nada de câncer prostático, a sua neoplasia é benigna, ou seja, é melhor do que o Mundo. Benigna. Fomos às cervejas. Amigo é pra essas coisas, para a hora difícil.

***

Foto e texto: Darlan M Cunha

MPB_4. Amigo é pra essas coisas (autores: Sílvio Silva – Aldir Blanc): https://www.youtube.com/watch?v=lhi7YIfuwmQ